COMUNICÓLOGA
Doutora em Comunicação, com Pós-Doutorado em Sociologia da Infância

Bonitinho? Sharenting e os bebês nas redes

Com o uso cotidiano das tecnologias emergem novos modos de ser e estar no mundo. Em uma era em que o cotidiano é permeado pelas telas, modifica-se a construção da própria subjetividade, que passa, cada vez mais, por uma necessidade de visualidade. O apagar de uma fronteira clara entre os espaços público e privado é um dos exemplos mais evidentes. Amplificam-se os relatos do cotidiano, da intimidade, registrados em formatos de fotos, vídeos, textos ou áudios, disponibilizados na internet e, cada vez mais, nas diversas plataformas de redes sociais digitais. Momentos particulares tornam-se públicos.

O compartilhamento de imagens e dados sobre crianças na internet ganhou uma expressão própria na língua inglesa: Sharenting, termo que já é aplicado em diferentes estudos sobre a prática e que une as palavras “share” (“compartilhar”, em inglês) e “parenting” (ligado ao cuidado a partir da função de ser pai e mãe). Os pais e mães são, ao mesmo tempo, guardiões da privacidade das crianças e narradores das histórias destas na vida digital. Dois pontos a ressaltar sobre essa prática: as informações dispostas na internet permanecem acessíveis a um grande número de pessoas por tempo indeterminado; a intimidade, vida privada e direito à imagem das crianças são aspectos expressamente protegidos pelo art. 100, V da lei n. 8.069/1.990, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).

Um dos aspectos a refletir é que as crianças não possuem qualquer tipo de controle sobre as decisões de seus pais e mães no ambiente da internet, especialmente nos primeiros anos de existência. Se, por um lado, as crianças sempre estiveram, em maior ou menor grau, com suas vidas nas mãos de seus guardiões oficiais, este aspecto ganha novos contornos com o Sharenting. Mesmo as plataformas de redes sociais digitais Facebook, Twitter, Instagram, Youtube, Whatsapp restringindo a 13 anos a idade mínima para criação de contas/perfis, crianças e imagens de crianças circulam e protagonizam muitos desses ambientes, e chama atenção, especialmente, a criação de contas, perfis e imagens de bebês.

Uma simples busca no Instagram pelo termo “instakids” retorna 20.564.917 resultados. O termo “instababy” devolve 28.330.410 – cada número representa pelo menos uma imagem de criança, de algum lugar do mundo, disponível para qualquer usuário da internet, seja ele participante ou não do Instagram. Além disso, há muitos perfis de crianças – e mesmo de bebês – que recebem o selo indicativo de “contas verificadas”, ou seja, uma autenticação da própria rede social que aponta que a conta com a qual se está interagindo é autêntica de uma figura pública, celebridade, marca ou entidade notável. Não se pretende aqui promover uma discussão acerca do descumprimento de regras etárias, muito embora ela seja evidente, necessária e urgente.

O Sharenting, o compartilhamento, por pais e mães, de imagens e vídeos de crianças pequenas parece contribuir sobremaneira para o debate sobre a relação entre os adultos e as crianças, entre pais, mães, filhos e filhas. Questionamos se podemos tomar conta da vida dos bebês a ponto de filmarmos sua vida cotidiana visando compartilhamento, de lhe atribuirmos voz, tom de voz, interjeições, sensações, desejos, emoções ou sentimentos, salvaguardados pelo fato de sermos os pais, as mães ou mesmo os responsáveis por eles. Essa não parece ser uma atitude que aciona os bebês e as crianças como sujeitos. Mais parece imperar o simulacro, o fingir ter o que não se tem. Inúmeros bebês estão aí pelas redes falando sobre si, através de vozes e encenações de seus cuidadores, muitas vezes fazendo lembrar, ao extremo, do teatro de marionetes. Divulgar imagens e vídeos desses bebês e crianças envolve diversos e importantes riscos, incluindo os de desrespeito à privacidade, intimidade, dignidade, etapa de desenvolvimento.

Se precisamos dar voz às crianças, integrá-las como sujeitos, estimulá-las a serem autônomas, terem confiança e autoestima, nosso papel não seria o de evitar exposições até que pudessem fazer suas próprias escolhas e, no limite mínimo, falarem por si?

Sabemos que no contexto de pandemia do coronavírus, de determinações para que fiquemos isolados em nossas casas, a vontade de estar junto, de estabelecer comunicação, de mandar e de receber notícias se exacerba, e é mesmo positivo poder manter um canal de contato com as pessoas caras ao nosso convívio. Usar plataformas para restaurar essas proximidades com familiares, amigos, colegas é poder usufruir das características mais promissoras de nossos meios digitais. Protegendo e cuidando da forma como se dá a presença das crianças nesses ambientes de reencontro, garantimos o cumprimento de parte de nosso papel como adultos, o de garantir privacidade e segurança aos nossos pequenos.

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Autor(A)

Juliana Tonin

Vida em Comunicação

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