COMUNICÓLOGA
Doutora em Comunicação, com Pós-Doutorado em Sociologia da Infância

Força das palavras

Não lembro de todos os detalhes, mas sinto muito ainda os registros deste episódio.

Por volta dos meus 11, 12 anos de idade, vivi uma experiência que me fez atualmente produzir a seguinte narrativa: suas palavras poderão entrar visceralmente em alguém cuja essência, psique e personalidade estão em construção e você nunca saberá como essas palavras poderão sair! Atente, cuide, proteja!

Sexta série do ensino fundamental de uma escola pública de um município do Rio Grande do Sul. Final da década de 80, eu, filha do meio de uma família de mulheres, meu pai, o único homem, dizia: trabalho para mulheres… esposa e três filhas…

Minha mãe era uma dona de casa impecável. Casa, roupas, organização doméstica, tudo 100%. Habilidosa e criativa, ela pintava, costurava, tricotava, crochetava e bordava muito bem. Eu, a filha do meio, sempre admirei muito os dotes maternos, mas não buscava aprende-los, gostava sim era de vê-la fazer.

Boa aluna, estudiosa no nível necessário e dedicada, eu sempre passei de ano por média. Tempos remotos, quem é daquela época sabe do que se trata. Matemática nunca foi meu forte, mas o restante fluía tranquilamente.

Esta série foi marcada pela inclusão de duas disciplinas no meu currículo de atividades: Técnicas Comerciais e Técnicas Domésticas, cujo conteúdo tratava respectivamente de assuntos administrativos para o dia a dia do indivíduo, coisas básicas. Já a segunda, abordava tópicos das rotinas domésticas, como alimentação, costura e bordados. A intenção era ensinar as meninas a comportarem-se como tais e os meninos, como meninos.

Posso dizer que meu nível de dedicação às novas disciplinas era mediano. Como nas demais, eu cumpria o bom papel de aluna dedicada, sem mais ou menos.

O final do ano estava chegando, e com ele as atividades de avaliação. A disciplina de Técnicas Domésticas era divertida, pelo menos assim eu a sentia. Teríamos uma tarefa prática final, que seria a nota da matéria. Por algum motivo, as tarefas foram dicotômicas:

As meninas deveriam confeccionar de 5 a 8 amostras de diferentes pontos de tricô e os meninos bordariam uma pequena tela. Meninos e Meninas com atividades distintas estabelecidas pela professora, uma mulher um tanto fria e nada acolhedora, pelo menos assim eu a sentia.

Fico pensando na ambivalência de sentir diversão em uma aula, onde a mestra em nada acolhia… Acredito que meus recursos internos e alguns externos ainda estavam bons.

Tarefas distribuídas, alunos com seus deveres, meninas trocando ideias sobre os pontos, agulhas e cores. Eu inicialmente pensei: super fácil! Minha mãe vai me ensinar, porque ela faz coisas lindas e eu farei super bem…

O tempo foi passando e meu interesse em nada surpreendia, fui deixando…

Pois bem, estava no momento de sentar e fazer a tal tarefa. Minha fala então foi:

– Mãe, me ajuda a fazer alguns pontos de tricô? Preciso entregar até tal dia, hoje não recordo quais as datas. Preciso de lã e agulhas!

Prontamente, tudo em casa: apetrechos conhecidos e íntimos de minha mãe. Aos finais de tarde, sentávamos em uma salinha onde ela guardava seus mimos de costuras para minhas aulas de tricô.

Dia após dia, foram aulas com desempenho baixo, pouca habilidade e interesse gradativamente diminuindo… Eu não conseguia aprender os pontos, via a facilidade dos laços entre os dedos de minha mãe e nada! Conversei com minha professora e pedi dicas, observava minhas colegas… Recorri a uma senhora vizinha de mais idade que tricotava muito bem também, foi mestra de minha mãe! Nada! Recorria a minha mãe, mas os pontos repuxavam, entortavam, não evoluíam!

A data da entrega se aproximava velozmente, meu pânico atingiu a esfera familiar, estava ansiosa porque não teria o que entregar! Então me ocorreu a ideia de conversar com a professora para apresentar, assim como os meninos, uma tela bordada. Pensei que seria mais fácil… Como de fato foi!

Ela permitiu que assim eu fizesse, com a mesma data de entrega.

Meu pai, após a minha solicitação, chegou no fim da tarde do dia seguinte com uma tela de 20 cm por 30 cm, com a gravura de uma casa em um campo… Lembro-me como hoje… Muito bonita! Linda! Colorida e alegre! Minha mãe providenciou as lãs coloridas, agulhas de bordado e me ensinou os primeiros pontos! Que diversão, eu estava amando… Minha tela evoluiu com beleza, dia após dia!

O entusiasmo era grande, a data se aproximava e meu trabalho estava em conclusão. Dia de entrega, meu sentimento era de satisfação… Tarefa cumprida, mostrei a todos a minha tela, porque para mim estava perfeita para uma iniciante.

Pela lista alfabética de chamada, a professora solicitava a apresentação. Quando chegou na letra D, meu nome na sequência foi anunciado para a entrega de minha tarefa.

Satisfeita, orgulhosa da conclusão e principalmente da minha realização, entreguei à professora a minha tela, com a casinha bordada, árvores, flores e montanhas.

Sentei na classe em frente à da professora e entreguei o trabalho em suas mãos. Minha mestra de Técnicas Domésticas agarra a minha tela, a vira e observa para analisar o verso, atrás, onde os nós e arremates são feitos…

Sem rodeios exclama:

– Tua tela é como uma menina com um vestido bem bonito, mas com uma calcinha suja… A frente está bonita, bem bordada, mas atrás está muito feio. Tu deverias ter bla, bla, bla, bla, bla… (Não recordo mais suas palavras, ali se encerraram os registros dessa mulher na minha vida).

Eu levanto da classe em frente à mestra de Técnicas Domésticas, caminho até a lixeira da sala e lá “guardo” a minha tarefa, junto à minha realização e satisfação.

Nossa professora era, na minha percepção, muito fria.

Por DC, 45 anos.

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Autor(A)

Juliana Tonin

Vida em Comunicação

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