COMUNICÓLOGA
Doutora em Comunicação, com Pós-Doutorado em Sociologia da Infância

Quanto tempo leva para mudar?

Nem tudo muda, o tempo todo, no mundo. Algumas coisas sim, outras nem tanto, outras não. Existem mentalidades bem enraizadas que custam a bater as asas (ou as botas) e acabam marcando gerações e gerações, bem longevas. Modos de pensar, de sentir e de agir consolidados, para além (ou bem aquém) de cada vida.

Toda uma receita é necessária para se operar uma mudança, em três atos: reconhecer a questão intelectualmente (e ter tempo); sentir sua emoção fisicamente (e ter tempo); atuar com o novo a cada instante (e ter tempo). Sem qualquer garantia de passar de uma fase à outra, tampouco de linearidade.

Dedicação, disciplina, estudos, experiências, conversas, viagens, terapias, lutas, rituais, tudo é ferramenta para que algo se modifique dentro de cada um, e leva tempo. A simples consciência de uma necessidade de mudança não opera, per se, sua realização. Temos de atuar para que ela aconteça, e leva tempo.

Por sua vez, o cotidiano sempre nos ajuda. Ele sinaliza as direções, as necessidades e os resultados alcançados, basta estar atento.

Foi esperando a chegada do Dia das Mães, na semana de 3 a 8 de maio de 2021, que recebi os sussurros desses novos tempos em diálogos com minha filha de 7 anos. Duas revelações em momentos de dormir.

A primeira delas ocorreu enquanto ela lia para mim um gibi. Há toda uma desenvoltura em sua leitura, competência adquirida graças à escola via telas durante a pandemia. De um ano para outro, nossos papéis foram invertidos. Antes, eu lia para ela, agora, ela lê para mim.

De repente, ao ler uma frase de personagem solicitando ao outro que apanhasse algo, prontamente, parou e me perguntou:

– Mãe, o que é apanhar?

Paralisei. Minha filha não tinha registro desta palavra, não sabia o que significava apanhar, em nenhum de seus sentidos. E eu estava ali, diante de uma quebra de paradigma, lembrando que, como escreve Morin, todo desvio acaba se tornando, a seu modo e no seu tempo, um novo imprinting. Respondi a ela:

– É pegar.

Ainda não encontrei palavras para traduzir aquele contentamento interno e profundo, morno e conectado com algo que transcende o tempo e o espaço. Foi exatamente o que senti.

Já na véspera do grande dia, descontraídas em nosso ritual noturno, travamos a segunda conversa:

Ela: – Eu tô louca para que chegue amanhã, é um dia muito especial. Queria que as horas passassem como segundos!

Eu: Sim!!! E vamos pular corda?

Ela: N…ão…. pular corda não quero.

Eu: E que tal cabra-cega?

Ela: Siiiim! Mas cabra-cega com duas é muito pouco…

Eu: Podemos convidar o mano, acho que ele vai querer.

Ela: EEE, o manelbi vai ter que, porque amanhã é tu quem manda.

Gargalhadas.

Eu: Mas, filha, mãe manda sempre!

Gargalhadas. Gargalhadas.

Ela: É que, assim, tu escuta, então tu não manda sempre.

Alegria, cumplicidade, riso, ironia, vontade de convencer pela força, certeza de que existe um poder de mandar, tudo às claras, orbitando naquele instante. Mas o reconhecimento da existência de um tipo de escuta que abre espaço para o outro e que propõe algo diferente daquela verticalidade do “seja feita a minha vontade”, desvelava outra faceta dessa nova paisagem.

Quando uma criança revela que não sabe o que significa apanhar e pode dizer para sua mãe que a escuta é essencial para a ressignificação dos jogos de poder contidos nas relações, podemos ter certeza de que muitas águas já rolaram. Significa que as certezas imperam e reina a perfeição? Longe disso.

É uma enorme mudança contada de grão em grão. Leva tempo, diverso e imprevisível para que aconteça, pois, via de regra, resistimos ao novo, temos apego ao antigo, porque conhecido, mesmo que doa. Ademais, somos muitos.

Mas há coragem suficiente para acreditar que uma pessoa, para crescer bem e nos conformes, não precisa ser levada a se sentir mal, numa espécie de operação que deseja o positivo atuando pelo negativo.

Ninguém precisa ser silenciado, diminuído, humilhado, castigado, violentado para vir a ser melhor, porque isso não é sinônimo de amor, muito menos de cuidado. Nosso cotidiano pandêmico também está aí para nos revelar, a todo instante, as consequências desses métodos. É triste ver alguém acreditar que machucar uma pessoa pode servir para seu bem. É triste reconhecer que esse alguém possivelmente já foi, e provavelmente ainda está se sentindo, mesmo que não consiga reconhecer, muito machucado. Talvez essa seja nossa maior miséria.

A vontade de mudança pode não ter previsão no tempo nem garantias, mas certamente apresenta muitos momentos e espaços para seu cultivo.

Assim como este.

Por Juliana Tonin

Mãe do Gabriel e da Catarina. Comunicóloga, Pesquisadora e Professora do Programa de Pós-graduação em Comunicação da FAMECOS/PUCRS. Pós-doutora em Sociologia da Infância (Paris V – Sorbonne), Coordenadora do LabGim, Laboratório de Pesquisas da Comunicação nas Infâncias.

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Autor(A)

Juliana Tonin

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