COMUNICÓLOGA
Doutora em Comunicação, com Pós-Doutorado em Sociologia da Infância

Você quer brincar na neve?

Foi o convite que fez nascer Olaf, o boneco de neve mais querido desde Frozen, filme de animação musical lançado no Brasil em janeiro de 2014, com classificação indicativa livre para todos os públicos. Gerado por Elsa, ainda em sua infância, nos tempos em que seus poderes de gelo eram considerados absolutamente naturais e espontaneamente serviam à diversão em brincadeiras com sua irmã Anna, o bonequinho bem-humorado, para além do inegável talento em fazer uma sala de cinema cair na gargalhada, faz pensar.

Olaf transborda bom humor, pureza, intensidade, doçura e compartilha, de imediato, já em sua primeira aparição, seu grande sonho existencial, do qual está plenamente convicto: o sonho de viver no verão. Com espanto, em cochicho, um de seus companheiros de cena reage: “vou contar a ele”. De fato, como poderia um boneco de neve desejar viver no verão? Verão é estação de calor. Calor derrete gelo. Ele está desejando algo muito perigoso, muito diferente e impossível de se realizar. Seria ele ainda imaturo para compreender o tal do sentido da vida e, assim, poder tomar decisões mais adequadas e seguras para si?

Sem hesitação, Olaf entrega-se às aventuras. Contagia-se com a vida alheia. Na garupa de um cavalo em galope acelerado, lança aos ares o compromisso de ajudar as pessoas que ama. Mesmo que custe a necessidade de orientar-se pelos caminhos do desconhecido: “vamos beijar o Hans!”. Mesmo que precise reconhecer que seria tranquilizador poder obter certezas adicionais: “Peraí, quem é esse Hans?”. O boneco de neve confia nos elos de amor que unem as pessoas, aumenta suas doses de coragem em detrimento do medo e da dúvida. E conquista, no momento em que se sentia suficientemente feliz pelos sucessos dos outros, a ponto de parecer poder abrir mão dos próprios, seu sonho de verão. Elsa cria para ele uma nuvenzinha com neve constante, que se locomove conforme seus movimentos, e ele consegue sobreviver a esse novo ambiente, em princípio, contranatural.

Em Frozen 2, lançado no Brasil em 2020, Olaf surge reflexivo sobre o que poderia vir a significar transformação. Procura compreender as mudanças constantes em sua vida. Para driblar seus desconfortos e incertezas, provoca situações de pactos de eternidade e de permanência. Justifica que sua inabilidade para lidar com mudanças é devido ao fato de ser ainda uma criança, e que crianças não sabem lidar com emoções. Chegando à fase adulta, pretende sua expectativa, atingirá um patamar avançado nesse quesito e saberá perfeitamente como lidar com qualquer infortúnio desestabilizante do já conhecido, já sentido, já vivido. Na adultez, tudo estará a salvo e sob controle. Curiosamente, ninguém aparece querendo “contar a ele”. Nem mesmo cogitando questionar se o crescer seria mesmo um movimento em linha reta, para frente, para cima. Tampouco intencionando refletir se ter mais idade significaria, de fato, o poder de tudo saber e de tudo poder fazer.

Tão desejoso de chegar ao pódium da estabilidade, Olaf acaba por morrer. Acompanhando a estreia do filme em Paris, em novembro de 2019, e em Porto Alegre, janeiro deste ano, em salas de cinema repleta de crianças, o momento de sua morte inundou a atmosfera do mais profundo pesar. Algumas vozes de crianças, aquelas que se encorajavam a atravessar a espessa camada do silêncio, emitiram: “Olaf morreu?”. Outros, incluindo-me, continham-se secando discretamente alguns pares de lágrimas. Pairava o sentimento de perplexidade. Como ousa o cinema a matar o Olaf? Que motivo haveria para dar a ver o último suspiro daquele bonequinho tão querido? O cinema ousa demais. Ousa nos mostrar o quanto podemos ser melhores, belos, felizes, realizados. Ousa nos fazer ver o quanto ainda somos precários, errantes, contraditórios. Ousa nos lembrar daquilo que por vezes preferimos esquecer, não saber, negar. Ele ousa. E a vida segue. E segue tão intensamente que, mesmo sem Olaf, os protagonistas superam seus desafios com heroísmo. A jornada se completa quando há constatação e aceitação da indissociabilidade entre real e imaginário, entre objetivo e subjetivo, entre visível e o invisível. Reintegra-se a magia, há muitos anos temida e renegada, na vida cotidiana. Um relativamente reconfortante happy end, não fosse o cinema ousar novamente e, via poder da magia, ressuscitar o Olaf.

Poderíamos nos permitir imaginar que, tal como Olaf, carregamos conosco, em nosso íntimo, um sonho de verão. Aquele sonho nosso, muito nosso, já manifesto desde os primeiros anos, mais bem vivenciado por uns, ou mesmo bastante sufocado por outros. Mas que segue conosco, pulsante mesmo se adormecido, em alguma caverna misteriosa de nosso ser. Sonhar, revelar e encontrar ressonâncias hostis à sua realização poderia levar, por um lado, e que talvez seja o pior deles, ao menosprezo dos próprios desejos. Nestas condições, talvez nos conformássemos em ir levando a vida como seres de sonhos sufocados, zumbizando pelos dias, seguindo rigorosamente o plano previamente estabelecido e autorizado pelos outros seres de sonhos sufocados. Noutras condições, nas de crenças inabaláveis nas forças da autonomia e da autenticidade, poderíamos ser os sonhadores que sonham, revelam, criam e conseguem, tal como Olaf, bancar os riscos envolvidos em se desejar algo jamais visto, jamais sentido, jamais operacionalizado. Seriam os seres que praticariam uma simples operação de criar, sem temor, o Novo. Estes provocariam e dinamizariam efervescências, desvios, calor cultural, nas palavras de Edgar Morin. Mudariam os rumos e sentidos da existência. Ampliariam a consciência planetária. Abririam caminhos para a reconciliação e restauração da complexidade no mundo e para o acolhimento da condição de sermos, cada um e todos, inteiros na diversidade.

O bonequinho de neve faz pensar: o caminho se faz caminhando, nunca se trilha sozinho e as impermanências são constantes. Há grandioso valor no papel que cada um pode desempenhar na realização de sonhos de outros. Sonhos são grandes desafios, possuem carregadas doses de riscos e de interdependências e estão profundamente conectados nas zonas do conhecido e do mistério. Faz pensar que, para reintegrar nossas partes desconhecidas, dormentes, renegadas, silenciadas, talvez seja mesmo preciso morrer e renascer, e muitas vezes.


Por Juliana Tonin
Texto publicado no Caderno de Sábado – Correio do Povo | 02.05.2020

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Juliana Tonin

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