COMUNICÓLOGA
Doutora em Comunicação, com Pós-Doutorado em Sociologia da Infância

Conta Comigo

Para ir em frente, às vezes temos de voltar e rever nossa base.

Aprendi na infância meus valores essenciais. Não foi tudo de uma vez, nem em um único lugar, e precisei de muitas pessoas.

Em casa, com meu pai, forjou-se a pedra fundamental.

Ele perdeu a visão num acidente de carro quando completei cinco anos. Mas tocou a vida. Filho mais velho de três, eu sabia que ele precisava contar comigo. 

Ele trabalhava a semana toda, eu estudava, e nos desencontrávamos muito. Porém, havia o sábado, o dia em que ele ia a pé ao supermercado, a duas quadras de casa. Eu ia com ele.

Fazíamos uma dupla: eu o conduzia, e ele conduzia. Era o dia.

— Olá! — Alguém o cumprimentava durante o trajeto.

— Olá, fulano! Como está? Como vai a fulana? — Ele respondia.

— Meu pai é mágico!  Ele sabe quem são as pessoas! — Eu me encantava.

No início, eu ficava só admirando, mas um dia perguntei:

— Como sabe quem são as pessoas?

— Olha, a fulana… Ela usa um salto que faz barulho quando está vindo, um perfume de rosas de que eu gosto muito, pois lembra muito o meu, de alfazema… Ela sempre passa por aqui nesse horário para levar a filha ao ballet

— Então ele junta várias informações e olha para as pessoas de olhos fechados!  — Eu concluía por mim mesmo.

Ele descrevia as coisas para mim e, quando não sabia de algo, era minha vez de descrever. E eu usava a minha forma de ver as coisas; então ele também precisava se conectar comigo.

— Não passa que tá vindo carro! Olha para cá! Não olha para lá! Não passa disso…  — Era ele que me dizia, sempre com a mão pousada sobre meu ombro.

Eu tinha necessidade de contar com ele, porque não sabia o que fazer. E ele precisava que eu fosse seu guia. Eu não via nele alguém cego, porque ele reconhecia suas limitações, mas não se limitava a elas.

No supermercado, ele me dizia quais coisas eu devia pegar. Se eu pedisse um chocolate, e ele autorizasse, eu tinha de escolher sozinho, porque ele não via qual era…

— Essa criança tá levando o que tem de levar? — Era o clima que pairava quando chegávamos ao caixa. 

Então ele precisava adotar uma postura de que era aquilo ali mesmo; tínhamos de contar um com o outro.

Na hora de pagar, ele abria o bolso e pagava.

— Olha só, pai, essa não é de 10… — Era o máximo de intervenção que eu podia fazer; eu não pegava o dinheiro da mão dele; nossas posições eram muito claras.

Ele nunca jogou futebol comigo, mas tínhamos esse sábado.

— A fraqueza não é uma entrada para eu te usar, mas um convite para que eu possa estar contigo. — Foi o concreto que esse nosso sábado cimentou em mim.

Aprendi sobre conexão, confiança, cooperação, limites, honestidade e sobre a magia de olhar sem ver. Eu precisava ver a alma das pessoas, depois o corpo, e isso me ajudou a compreender como deveria olhar para as mulheres.

Eu me saía bem graças a essas sabatinas. Conhecia mais da vida. Mas isso não me impediu de tentar arruinar toda obra, pois, já aos sete, ou oito, eu me meti a ladrão.

Ao lado da nossa casa havia um supermercado, e eu subia pelo muro de trás, entrava no depósito e pegava Coca-Colas. Era um roubo extremamente dramático. Tinha a entrada um, a entrada dois, a entrada três, a maneira de subir, de sair, o horário, tipo de roupa, tênis, o plano para driblar o vigia; eu era um Indiana Jones naquilo. Custava uma tarde para pegar uma Coca-Cola.

— O que é esse monte de Coca-Cola aqui? — Nããão! Minha mãe me desvendou!

Seis garrafas de Coca-Cola na porta da geladeira, e ninguém tomava esse refrigerante lá em casa…

Daí a mãe descobre, espera o pai chegar, e eu encarcerado, esperando o executor com o produto do roubo na mão.

— Vão me mandar devolver! Vou me confrontar com quem eu fiz mal, que é meu amigo? E amigo do meu pai?! Não era isso que eu queria! — A verdade me corroía por dentro; a aventura virou uma tragédia para mim.

Caminhamos meia quadra, pai, mãe, eu e a sacola com as Coca-Colas. Meu pai e eu entramos na sala de vidro, localizada nos fundos da loja, onde o dono ficava. Ele apertava meu braço;  sabia que, se não o fizesse, eu fugiria. Foi o pior momento da minha vida. Minha mãe ficou do lado de fora.

— Olha, ele está subindo pela parte de trás de casa e roubando tuas Coca-Colas… Não sei se roubou mais coisa… — Meu pai iniciou a conversa.

— Foi mesmo? — A conversa pareceu engrenar.

E eu ali, vergonha pura.

— Roubei! Entreguei! Deu! — Era o que minha culpa queria soltar pela boca aos gritos, para encerrar tudo de uma vez.

— Vem comigo aqui. — O dono me chamou.

— O quê? Vão prolongar isso? — Minha culpa se desesperou.

— O senhor pode vir junto. — Ele autorizou a presença de um familiar.

— Bom! Um vai tirar a cabeça e o outro os pés! — A punição concluiu rapidamente para mim.

— Senta aí! — Ordenou. — Guri, quero te contar uma coisa. Faz horas que estão me roubando muitas coisas aqui…

— Meu Deus! E ainda vou ser acusado pelo que não roubei? — Cheguei ao pico do desespero.

— … E eu preciso de alguém que cuide para mim. Quero te contratar, porque tenho quase certeza que eles vêm pelo lado da tua casa…  Tu vai ganhar um Estância Velha a cada quinze dias para esse trabalho.

— Quê?! Vou ganhar um emprego e meu chocolate preferido por ter feito a coisa errada? Então posso continuar subindo o muro!? Era isso o que eu queria! — Mas agora o meu objetivo era o de cuidar e não de roubar. — A salvação iluminou-me por dentro.

Ele não deixou de ser meu amigo pelo meu erro. Viu em mim uma criança, e não um criminoso, e fez algo que era bom para ele e para mim.

— Então não se pode pensar que só existe o lado ruim nas pessoas. — Mais uma conclusão e um alicerce forjava-se dentro de mim.

Eu me sentia forte e poderoso. Mas mesmo assim a minha força parecia ficar exposta a terremotos quando ia à escola. 

Isso porque eu tinha de enfrentar todos os dias a sequela que o acidente do meu pai deixou em mim. Como aconteceu durante meu período de alfabetização, acabei não desenvolvendo a habilidade de escrever. Apenas na faculdade descobri o nome disso: dislexia traumática.

Fui levando… primeira, segunda, terceira séries… Mas, da quarta para a quinta, a professora, que era a mesma da oitava, resolveu me rodar.

— Não vou passá-lo! Não sabe escrever! Não tem caderno! — Decretou para meus pais.

Ela era uma professora muito respeitada. Então meus pais resolveram que eu trocaria de escola: do colégio de freiras para o dos padres.

— Vamos ver o que a gente pode fazer. — O padre me recebeu.

Já no meu primeiro dia, morreu Tancredo Neves, e não teve aula. Era um sinal. De fato, meu coração era do colégio das freiras, lá eu era feliz. Tinha horta, coral, teatro, enquanto na dos padres, apenas um monte de brucutus, um campo de futebol gigante e aula de gaita; era zero. — Preciso mostrar ao mundo que não quero estar aqui! — Determinei.

Tchum, tchum, marcha, marcha! — Seguia convicto na primeira fila do desfile de Sete de Setembro.

Eu estava pronto.

Quando chegamos em frente ao palanque onde estava o prefeito, virei para eles, levantei a camiseta do colégio dos padres e exibi, de peito aberto, a que estava por baixo: a do colégio das freiras. Não podia desistir daquilo que me fazia bem.

Foi um escândalo na cidade.

Mas meus pais compreenderam, e me autorizaram a voltar para as freiras.

— Ele é uma pessoa muito inteligente, mas não posso largar alguém para o segundo grau desse jeito. Não vou formá-lo, saindo da minha mão, sem que saiba escrever. Se não aprender até a oitava, vai rodar, e pode trocar de colégio… — Assim entramos todos num acordo.

— Quem é que vaaai, quem é que vaaaai, quem é que vai nessa barca de Jesus? Quem é que vaaaai… — Voltei para o coral! Voltei para as novenas! Para tudo!

Dezembro, final do oitavo ano, todos os melhores alunos já passados. E eu… bem… ela já havia definido pela reprovação. Mas haveria o evento de aniversário da cidade no qual faríamos um jogral nas escadarias da prefeitura, e minha professora era famosa em jograis.

Fomos. Trinta e dois estudantes numa fila ascendente, cada um ocupando um degrau da escadaria. Quem deu o jogral? Eu, lá da ponta de cima, e uma colega, lá da ponta de baixo, pois os outros não o haviam decorado… Por sorte, salvamos o jogral.

Não abandonei a professora naquela hora, pois nunca achei que ela estava errada em não me passar de ano. E eu sabia fazer o jogral; não era trabalhoso. Tudo era fácil, ainda que não conseguisse escrever. Eu sabia que tinha essa limitação, mas não me deixava limitar por ela.

— Não tenho como rodá-lo. Tenho vários ótimos alunos aqui, mas nenhum conseguiu me retribuir isso. Ele, que eu tinha desgarrado totalmente, foi quem se responsabilizou junto comigo. — Foi seu novo discurso; enfim, eu passei.

— Não é o que ele escreve que fará dele um bom aluno; é seu caráter. — E minha fundação parecia estar pronta.

Não mudo sequer um minuto vivido para construir minha base, embora tenha me exigido suor. Aprendi muitos valores, os quais reconheço com mais ou menos clareza.

Mas a pedra fundamental, aquela que recarrega meu olhar e me estimula a tocar a vida de hoje, é a de que foi possível, e sempre será, em qualquer situação, contar comigo.



Juliana Tonin

Imagem

Imaginâncias IX

Clarissa Menna Barreto

Apoio e revisão

Prof. Paulo Flávio Ledur


CRONICONTO 09

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Contos inspirados em experiências reais.

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