COMUNICÓLOGA
Doutora em Comunicação, com Pós-Doutorado em Sociologia da Infância

Chama do Amor

— Não vai haver banquete desse jeito.

— Nada de peixe. Vai ser um vexame.

— Hei! Minha rede enredou alguma coisa.

— Um pedaço de tronco, certamente…

— É uma cabeça!

— Pera! Ontem veio outra coisa. Era um corpo.

— Vamos ver se encaixa…

— Tem cola?

— Cara, estamos em 1717. A cola vem depois… Dá um jeito!

E peixes e mais peixes surgiram quando os pescadores grudaram o corpo e a cabeça de Nossa Senhora da Conceição Aparecida: o banquete estava garantido.

FIM

— Juliana! Essa é a história da Padroeira do Brasil. Podes tentar escrevê-la de um jeito mais santo?

— Quem é você?

— Sou a voz da tua consciência.

— Prazer! Agradeço a sugestão, mas terá de ficar assim mesmo. Nem era minha intenção escrever essa história, que está acessível em qualquer canto do Google. Tenho outras coisas para contar.

— Então, por que começar por ela e não ir direto ao ponto?

— Sabe, gosto de escrever sozinha. Pode dar licença, por favor?

— Hã! Quero só ver…

— Exato! Tu só crês no que vês… Quero escrever sobre isso, se parar de me atrapalhar.

— Então o conto é sobre mim?

— Não! É sobre Nossa Senhora Aparecida, o Dia das Crianças e o Brasil.

— Oi? Tu pareces não estar bem hoje…

— Vamos fazer um combinado? Senta aí, me dá cinco minutos, em total silêncio, e deixa eu escrever. Depois eu sento contigo, e tu me dizes o que achaste, pode ser?

— Posso usar teu cronômetro?

— Ué!  Não é tu que sabes de tudo? Conta mentalmente! Três, dois, um… Valendo!

— Por favor, Iemanjá, atenda o meu pedido.

De cabeça baixa, olhos fechados, mãos espalmadas uma contra a outra, era assim que eu pedia por seus milagres durante minha infância. Ela sempre me atendia.

A santa ficava na cozinha da casa dos meus pais, sobre um móvel de canto, aéreo. Sempre elevada, tinha visão privilegiada de tudo.

— Olha! Tá ficando bom, mas uma dúvida: essa eu, tua criança, era tu – tu ou tu – eu?

— Pedi cinco minutos do teu silêncio. Cadê?!

— Okeyyy… Segue…

Descobri que não era Iemanjá já em idade avançada. Não sei por que pensei que fosse.  Mudei de casa, de cidade, e ela ficou lá, sob devoção, até o dia dezoito de maio de 2022.

Na década de sessenta do século passado, numa viagem de caminhão, meus pais foram ao santuário buscá-la.

— O que os fez sair de Erechim, percorrer estradas até o santuário, de caminhão, para buscar uma estátua?

— Nunca saberei. Descobri tarde demais, pois eles já partiram. Ficou apenas essa estátua, que, pela generosidade de minha madrasta, minhas irmãs e minhas tias, agora está comigo.

— Sempre esteve.

— Olha! Uma novidade! Então quer dizer que tu acreditas naquilo que tu não vês?

— Não te metas a espertinha comigo! Só queria te avisar que se passaram dois minutos. Não vou mais interromper o fluxo divino, encantado e imaculado das palavras que jorram por meio de tua criatividade… Digita, digita, anda! Só uma perguntinha antes… Quando tu vais juntar o Brasil e as crianças a Nossa Senhora Aparecida?

— Se prometer ficar quieta, pode ser agora.

— Juro pela minha mãe mortinha!

— Não vale. Tua mãe é a mesma que a minha, e ela já morreu faz tempo.

— Então juro por minha conta e risco; sou consciência e sempre tenho razão.

— Aceito. Assim: a Santa que protege o Brasil estava dividida. O Brasil está dividido. Tudo vai funcionar quando houver conexão, quando juntarmos sua cabeça e corpo.

— Não sei se chamo a Samu ou os bombeiros. Brasil tem cabeça e corpo agora, por acaso? Tá louca?

— Ué, tudo tem cabeça e corpo, não sabia? Logo tu? Lembra quando estudamos sobre o imaginário e sobre toda a história do iconoclasmo ocidental, aquela que Durand escreveu tão bem sobre a…

— O que é o imaginário mesmo?

— Esqueceu? É a matriz pela qual nasce todo o pensamento racional.

— Então imaginário é um corpo que faz nascer uma cabeça?

— Não, é matriz.

— Mas o pensamento racional não é coisa da cabeça?

— É.

— Então o imaginário é uma matriz do corpo e da cabeça do pensamento racional?

— Isso. E também de todos os outros tipos de pensamento que são possíveis. É tipo Deus, a origem, a fonte, o princípio… Só que fica algumas camadas depois disso tudo.

— Então não está nada, nunca, separado?

— Nunca. Sinceramente? Achei que tu fosses mais inteligente; afinal, é minha consciência! E aqui estou eu, ensinando-te coisas que tu deverias me ensinar, e ainda por cima descumprindo minha parte no nosso pacto de silêncio.

— É que sou apenas a tua consciência, não o imaginário… Estou querendo saber onde tu queres chegar com tudo isso. Se tudo está sempre conectado, qual o problema?

 — O problema é justamente esse. Passamos a acreditar no contrário, que tudo está separado, individualizado e que pode, e deve, ser explicado racionalmente. Criamos uma cabeça, que julgamos mais nobre que o resto, e a opusemos ao corpo, uma parte mundana, como se os dois fossem excludentes. Assim geramos uma verdadeira guerra dentro de nós.

— Humm… E o que as crianças têm a ver com tudo isso?

— Lembras de quando Durand escreveu sobre elas, citando Lévi-Strauss?

— Uma das coisas que mais odeio é quando ficas me perguntando se me lembro de algo. Já não me conheces o suficiente para saber que me esqueço das coisas?

— Verdade! É que existem coisas que não podem ser esquecidas.

— Mas eu sou feita de lembranças e de esquecimentos.

— Então, concordas que não podes te meter a querer mandar e controlar tudo, certo? Existem mais lugares em mim além de ti, que guardam e sabem das coisas.

— E a criança? Vamos! Estou com pressa! Já estouraram os cinco minutos, e a roupa já deve estar pronta para ser recolhida do varal.

— Tua praticidade é muito bem-vinda em certos momentos, confesso… Bem, a criança, segundo eles, manifesta polimorfia social.

— Coitada! É grave?

— Não é doença! É a cura!

— Detesto tuas meias-voltas.

— É assim… Isso quer dizer que as crianças possuem, como eles dizem, “a integralidade dos meios de que a humanidade dispõe, desde toda a eternidade, para definir as suas relações com o mundo”.

— Como assim?

— Simples. As crianças não dividem.

— Verdade! E é muito ruim a fase em que não querem dividir nada com os coleguinhas. Uma vergonha para os pais!

— Minha Nossa Senhora, rogai por nós! Não é isso! Isso quer dizer que as crianças aprendem a classificar e a separar as coisas ao longo da vida, e isso é, por um lado, constitutivo do humano. Mas, ao mesmo tempo, quando somos adultos, ficamos adultecidos, e precisamos reconectar muitas partes que ficaram perdidas e esquecidas pelo caminho.

— Por que precisamos?

— Para seremos mais felizes, ora!

— Por que acha que somos tristes?

— Não vê? Ansiedade, remédios, suicídios, remédios, guerras, remédios, ódio, remédios… Isso por acaso é alegria pra ti? Já ouviu falar de acolher a criança ferida, encontrar a criança encantada, tudo aquilo que se fala quando se busca autoconhecimento?

— Ah, aquela história da criança que nos habita e tal…

— Isso! Mas não é uma só. São, no mínimo, duas. A que se sentiu machucada e a que está por trás dos ferimentos e aguarda para ser vista e celebrada.

— Posso dizer que a criança seria o corpo, e o adulto seria a cabeça?

— Opa! Agora gostei!

— Certo, deixa ver se entendi: Nossa Senhora Aparecida protege o Brasil. Sua mensagem vem pelo seu exemplo. Ela nos lembra que houve uma ruptura, instalou-se uma ferida da separação, e a única solução, para garantir a abundância e a alegria, é a reconexão dessas partes, cabeça-corpo, adulto-criança divina, como quiser.

— Aham! Creio que sim. É bem assim que consigo juntar tudo.

— Qual é a cola?

— Bem, acho que se chama Amor.

— Não deve ser. Amor é muito fácil.

— É simples; fácil não é.

— Nossa Senhora Aparecida é demais mesmo. Que tal uma vela para ela?

— E também para nós.

— Vamos cuidar, juntas, para que essa chama não se apague?

— Eternamente.



Juliana Tonin

Imagem

Imaginâncias – Especial 12 de Outubro

Clarissa Menna Barreto

Apoio e revisão

Prof. Paulo Flávio Ledur


CRONICONTO – Especial 12 de Outubro

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Conto Comigo

Contos inspirados em experiências reais.

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