COMUNICÓLOGA
Doutora em Comunicação, com Pós-Doutorado em Sociologia da Infância

Brincar é coisa séria

Bastam um amigo e duas motocas para encontrar Deus na Terra; ou o Diabo. Na brincadeira se dá a magia que torna tudo possível e emana a alegria que preenche toda a atmosfera. Mas às vezes ela pode ser fatal.

Naquele tempo, morava com meus pais em região de altos e baixos. Lá quase não havia calçada para pedestre nem asfalto para carros. As ruas de lama ou de paralelepípedo não animavam as rodas de plástico das motocas. Elas patinavam, travavam; não desabrochava a diversão, só a frustração.

No dia da aventura com meu amigo, apenas um lugar com piso de cimento bem lisinho e com muito espaço estava à nossa espera, o silo. Esse era seu nome e sua função. Um local de armazenamento de sementes, que continha três espécies de pirâmides pequenas e baixas, ou quatro, todas com calçada ao redor. No topo de cada uma delas havia um buraco que, pelas tampas abertas, deixava ver que só guardava escuridão e eco. O silo ficava no Bairro Esperança, e este parecia ser um sinal para não desistirmos da vontade de andar sem entraves com as nossas máquinas.

Chegamos. A vista era linda. Ansiosas, rapidamente as motocas puseram-se a voar. O barulho do plástico das rodas tinindo pela calçada era o som da vitória. Os sopros de vento no rosto a cada descida das pirâmides eram as rajadas da coragem. Excitação e gargalhadas; o silo não estava mais só.

− Já para casa! – Foi o decreto que estilhaçou nossa aventura em menos de um segundo.

Nossas mães chegaram, do nada! Eram apenas duas, mas pareciam uma manada desgovernada. Eram gritos para todo lado. Eu não sabia se gritava junto, ou se corria. Estava acontecendo algo, mas o quê?!

− O que estão fazendo? Como vieram? Por que não avisaram? Vocês enlouqueceram?

Muito mais perguntas do que tempo para responder, nem dava para identificar qual das mães queria saber o quê. Estava zonza, mas com uma certeza: não era mais uma bomba atômica que havia explodido; o problema parecia ser com a gente. Já não avistava meu amigo.

Eu não entendia. Nós pegamos as motocas, andamos duas quadras, atravessamos os trilhos do trem, escalamos um pequeno matagal e estávamos no chão liso do silo fazendo nossas motocas viverem de verdade. Era divertido e moleza para nós.

− Vocês podiam ter morrido! − Disse minha mãe.

Isso nunca tinha me passado pela cabeça.

Chegamos em casa ao meio-dia. Fui convocada a me ajoelhar em grãos de milho na entrada da porta da cozinha e a assistir, dali e daquele jeito, ao almoço. Pareceu-me que tinha perdido alguns direitos. E talvez eu devesse ficar ali para tentar adivinhá-los, com a ajuda da dor e da fome.

Pensei da melhor forma que pude, considerando as condições. Minhas conclusões foram: eu não tinha o direito de me matar, nem por distração. Mas, se tentasse, mesmo sem querer, conferia imediatamente aos meus pais, por justa causa, o dever de tentarem me matar, seja de dor, de fome ou com o método que preferissem.  

Doeu.

Décadas depois, entro no quarto e encontro minha filha dependurada em sua cama alta, esticando os braços para tentar alcançar o lustre. Salta em mim a vontade de gritar em revoada:

− Desça já daí!

Mas me contenho. Antes de qualquer coisa, resolvo apenas praticar meu direito à curiosidade. Respiro, aciono a calma, a confiança, a atenção, e garanto que o espaço está livre e curto o suficiente para segurá-la em caso de queda; tudo isso na velocidade da luz.

− Oi, filha, o que tu tá fazendo aí? – Pergunto.

− Tô aqui arriscando a vida para enfeitar o lustre com essa fita, mas tá tudo bem. – Assegura-me.

Como ela sabe? 



Juliana Tonin

Imagem

Imaginâncias I

Clarissa Menna Barreto

Apoio e revisão

Prof. Paulo Flávio Ledur


CRONICONTO 01

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Conto Comigo

Contos inspirados em experiências reais.

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