Aprender a andar de bicicleta inclui os tombos. Exige a virtude de não guardar mágoas das cicatrizes.
Não me esqueço de quando eliminamos as rodinhas extras da minha bicicleta. Meu pai, segurando-a enquanto corria ao meu lado, soltou-me a sós com ela. Eu … me fui! O pedalar sincronizava com o ar da liberdade em todo o meu corpo. Eu era do mundo.
As bicicletas só vinham pelo Papai Noel, ou por doação dos irmãos mais velhos. A disputa era grande. A gente sempre crescia, mas a bicicleta não.
Logo que ganhei uma bicicleta maior, gostei porque ela possuía suporte para carona.
— Então quer dizer que alguém poderá ir comigo para o mundo? — Maravilhei-me.
Já havia aprendido a empinar, a soltar as mãos do guidão durante o movimento, a descobrir os tipos de solo e seus diferentes contatos com as rodas; mas, agora, aprenderia a compartilhar a bicicleta, sem ter de emprestar.
Convidei a mulher que auxiliava nos serviços domésticos na minha casa. A ideia era andar numa lomba asfaltada, distante quatro quadras dali.
— Mas eu não sei andar de bicicleta. — Titubeou.
— Minha bicicleta tem lugar para duuuas pessoas. Vamos! — Estimulei.
Ela não me contrariou. Chegando lá, confiante, tudo apostei.
— Vamos fazer assim: eu vou na garupa, tu vai guiando. — Orientei.
— Mas eu não sei andar de bicicleta! — Reafirmou.
— Neste lugar é fácil. Em lomba abaixo, vai que vai. — Garanti.
Ela, confiando que nada poderia dar errado, e eu, sem dar qualquer instrução adicional, pactuamos e partimos.
Muito rapidamente atingimos velocidade acentuada, que só aumentava. O vento forte fazia seus longos cabelos serpentearem em meu rosto; eles lançavam o veneno de abafar nossa conversa.
— Aperta o freio! — Gritei.
— Quê??? — Ela me devolveu.
— O freio, o freio! — Berrei.
— Onde é o freio??? — Ousou perguntar. Como se tivéssemos tempo para isso…
Num passe de mágica, fizemos piruetas umas sobre as outras, ela, eu e a bicicleta. Sentimos toda a aspereza do asfalto. Paramos. Só havia dor, desespero e sangue. Ficamos ali por tempo suficiente para entender que a única solução seria levantar e ir embora. Fomos.
Concentrava-me para caminhar e segurar o joelho direito, que se destampou. Sentia terrível humilhação. Minha parceira, por sua vez, questionava: como justificar que teve um ato de coragem e não de irresponsabilidade?
Passei mais de dez dias sem andar, muito menos de bicicleta.
Desisti? Nunca!
Desde que começou a pandemia, tento comprar uma bicicleta nova. Fraquejo; nunca por medo, sempre por dúvida.
Acontece que o Papai Noel não aparece mais para mim; então é mais difícil. Vou a uma loja e tenho de fazer o pedido para um vendedor.
— Quero uma bicicleta. — Manifesto.
— Pois não. Para que tipo de uso? Qual material? Câmbio? Freio? Como gosta do guidão? E do banco? Quantas marchas? Qual cor? Importada ou nacional?
Não lembro sequer uma vez ter recebido carta de retorno solicitando essas especificações. Ou bicicleta era bicicleta; ou Papai Noel era um gênio.
Hoje, bicicleta é um universo. Três: o de suas características, o dos equipamentos de segurança, e o dos tipos de roupas dos ciclistas. Temo escolher mal. Prorrogo.
— É preparação para guerra, ou para passeios? — Contesta minha alma aventureira.
— Pode ser ainda mais legal andar de bicicleta com tudo isso. — Apaziguo.
— Certo. Então quero uma com dispositivo antitombo. — Determina.
— Puxa! Essa nem se tu te comportares. — Lamento.
Juliana Tonin
Imagem
Imaginâncias II
Clarissa Menna Barreto
Apoio e revisão
Prof. Paulo Flávio Ledur
CRONICONTO 02