COMUNICÓLOGA
Doutora em Comunicação, com Pós-Doutorado em Sociologia da Infância

Juntos, sempre ganhamos

É complicado ter irmãos na infância.

Sou a mais velha, e isso me deu enormes vantagens. Ele, o do meio, dois anos e pouco mais novo, tentava chegar perto do meu posto, sem sucesso. A caçula, caçulinha, como se afastava oito anos da minha idade, não era minha irmã; era a boneca que chora, ri, faz xixi. 

O bicho pegava mesmo entre mim e ele; tínhamos as nossas questões. Todas as tardes, quando usufruíamos do desprazer de ficar em casa juntos, vigiados pela senhora que trabalhava para nossos pais, a gente se atracava. 

Eu cresci muito, e rápido, então, fisicamente, eu o dominava. E me prevalecia. Esticava o braço, com a mão direita, segurava sua testa, e, de cima e de longe, via-o se debatendo como se estivesse disputando primeiro lugar numa prova de natação.

— Ha-ha-ha! — Cantava minha vilania.

— O-lho cas-ta-nhoo! — Contragolpeava rasteiro.

— Olha que vou levar vocês para a Febem! — Ameaçava ela. 

Como a gente não sabia o que era isso, nada surtia contra o nosso escarcéu.

As disputas eram ferrenhas. Escancarávamos os defeitos que julgávamos desqualificantes um do outro. Ele, com seus olhos azuis, sempre se sentia em vantagem. Mas eu, com meus cabelos lisos, tentava uma compensação. 

As comparações se complicavam mesmo na escola. Ele era lindo, chamava atenção de todo mundo. Parecia mais uma obra de arte do que meu irmão. Não que eu fosse feia, mas, perto dele, passava batida.  

Eu era a inteligente. Poderia ter sido uma nerd, mas não, também era popular e querida. E ele … só lindo. 

Isso parecia pressioná-lo. Porque na escola, afinal de contas, não se espera a beleza, e sim a performance. Os professores colocavam essa expectativa sobre ele, que, em comparação a mim, não correspondia. Aí eu ganhava. 

O fato de não conseguir ser como eu parecia alimentar nele certa raiva. E ela fazia diferença em nossas brigas. 

Eu o atiçava pelo meu físico, mas sabia que minha dominância sofreria uma reviravolta assim que as turbinas dessa raiva estivessem ao ponto de decolagem para cima de mim.  Minha força física sempre perdia. 

Segurei a cabeça dele até sua raiva eclodir, e saí em disparada para o banheiro.

Pow! — Bati a porta.

Pow! — Ele se jogou contra ela.

Ficou difícil para mim. Ele se lançou antes mesmo de eu conseguir trancar a chave, o que me levou a experimentar habilidades contraditórias até então: tinha de segurar a porta enquanto girava a chave para trancar a fechadura. Aguentei firme.

Pow!

Pow!

Eu sentia a onda de vibração da madeira cada vez que ele se jogava, se afastava, e repetia. 

Consegui controlar a minha parte, até o momento em que a porta cedeu sobre as minhas mãos, com marco e tudo. 

— Iiiiiih! — Paralisamos.

— Deu ruim! — Avaliamos.

— O que tá acontecendo aqui? — Veio ela… a nossa mãe!  

— Não sei, mãe, a gente foi abrir a porta e ela … caiu! — Nós nos aliamos.  

Talvez ela tenha corrido atrás de nós em volta da mesa com o chinelo na mão, mas não sei mais qual foi nosso castigo. Porque, de tudo, eu guardei apenas o instante encantado do estalar da nossa cumplicidade. 

Foi essa porta que despertou isso na gente? Não! Teve outra!

Eu tinha uns seis anos quando voltávamos da escola, eu e ele, sentados no banco inteiriço da Kombi, acompanhados por uma passageira não regular, a babá de outra criança. O motorista, sabendo que levava outro adulto além dele, afastou-se da tarefa de ter de parar, descer, abrir e fechar a porta da Kombi para as crianças, pois ela a assumiu. Quando chegou a vez dela, não foi diferente:  abriu, desceu com a criança, fechou, e se foi.

A gente ganhou mais espaço. E eu me esbaldei até conseguir me escorar na porta, que se abriu.

Plaft !  — Caí da Kombi. 

Por sorte, ela ainda não tinha arrancado. Por azar, ela arrancou. 

Eu fiquei ali, estatelada no chão, e me apavorei. 

— Pensa rápido! — Ordenei-me.

Calculei que a Kombi teria de parar na próxima esquina para poder dobrar à direita, com segurança, na avenida movimentada.

— Vai agoraaaa! — Reordenei-me. 

Levantei e saí correndo atrás da Kombi. Assim que ela parou, subi rapidamente, fechei a porta, sentei-me, e me pus frente a frente com meu irmão. Atônitos, olhamos um para o outro. Fomos assim, congelados, até chegar em casa. O motorista, que nem reparou, facilitou o nosso silêncio.

Mas bastou eu ver a minha mãe para me desmanchar em lágrimas.

— Ué! Tava quieta! Por que esse choro agora? — Estranhou. 

— O quê?! Bem capaz que tu caiu da Kombi! — Duvidou.

— Caiu! Caiu mesmo! Eu vi! — Testemunhou meu irmão.

— Mas como é que tu, desse tamanho, cairia da Kombi, sairia correndo atrás dela, subiria de volta e fecharia a porta, tudo isso sem o motorista ver?! — Arremessou de volta para mim.

Ela não acreditou.

Eu olhei para ele; ele olhou para mim. 

Até hoje tentamos convencê-la. Ninguém da família acredita. Mas ele sabe que me viu cair, e eu, além de ter caído mesmo, sei que ele viu. 

Por forças do destino, seguimos abrindo muitas portas. E, às vezes, um ou outro cai da Kombi.

Sabemos perder juntos; então sempre ganhamos.



Juliana Tonin

Imagem

Imaginâncias III

Clarissa Menna Barreto

Apoio e revisão

Prof. Paulo Flávio Ledur


CRONICONTO 03

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Conto Comigo

Contos inspirados em experiências reais.

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