COMUNICÓLOGA
Doutora em Comunicação, com Pós-Doutorado em Sociologia da Infância

Eu, anjo da guarda?

Foi em torno dos oito anos que meu anjo da guarda se revelou.

Minha mãe falava muito sobre sua existência. Por obrigação, tínhamos de rezar o Santo Anjo todas as noites … — Santo Anjo do Senhor, meu zeloso guardador, se a ti me confiou … 

Eu gostava. Mas me incomodava um pouco quando ele era substituído pelas orações do terço… Completo.

Nunca recebi sinais, mensagens, sequer tive visão alguma durante esses momentos de sentenciada conexão. Foi tudo por acaso.

Meus pais eram pequenos agricultores lá em Arroio das Pedras, nome que representa bem a paisagem do lugar. Na propriedade, havia muitos pés de araticum, fruta que a gente chamava de affenpear, a fruta do macaco, ou que os macacos gostavam, embora nunca tivessem sido vistos por lá na minha infância.

Eu era unha e carne com meu irmão um pouco mais novo, muito embora tivéssemos de nos separar para garantir o sucesso de algumas de nossas aventuras, como fizemos naquela.

— Olha! Tem um araticum no ponto lá em cima! — Apontei para o alto daquela imensa árvore.

Era um lindo exemplar, maduríssimo, no topo da nossa árvore. 

— Esse aí não vai escapar. — Desafiamos.

Eu me fui para cima e meu irmão, lá de baixo, alcançou-me uma taquara. Somando a altura que eu já havia subido com o meu tamanho e mais o da taquara, ainda assim faltava um palmo para alcançar a preciosa. 

A gente não sentia medo, embora eu já tivesse observado que o entorno daquela árvore não era feito do arroio, mas sim das pedras; cascalho puro.

— Se cair nessas pedras, eu morro! Não tem salvação! — Foi o que pensei antes de escalar.

— Vou subir mais um pouco. — Escolhi; era isso ou ficar sem a fruta.

Pisei confiante num galho que estava logo acima, distância suficiente para atingir a meta, e …

Crec! — Ele estava seco.

Scheiss! — Deixou escapar meu irmão, enquanto eu despencava em queda nada livre, e rápida.

Não deu tempo de contar os galhos por que passei raspando, e nenhum deles foi capaz de amortecer, nem de evitar minha ruína.

Foi aí que vi meu anjo em ação. Ele estivera lá embaixo segundos antes, calculara tudo, e fizera de uma moitinha o alvo do acidente. Caí exatamente no meio dela, amortecido por seus pequenos arbustos. Em seguida chegou a taquara, que, raspando em mim, resultou fincada no chão. 

Scheiss! — Eu também teria deixado escapar se tivesse conseguido falar alguma coisa.

Meu irmão me pegou rápido pelo braço e me conduziu até em casa para perto da mãe. 

— Mas como é que não vi que aquele galho estava seco? 

— Como é que a taquara não fincou em mim? 

— Como é que fui cair justo dentro daquela moita?

Por dentro eu não estava nada quieto. 

— Tu tá todo branco! — A mãe se apavorou quando me viu. 

Levou-me ao banheiro e me deu um banho de água de poço, que é sempre muito mais fria que água fria da torneira; precisava ser assim para tirar o susto. 

Bendita água! Uma hora depois, eu estava novo em folha. Pode ser que meu anjo tenha interferido aí também, pois, pensando bem, essa mesma água já me salvara outras vezes. Parecia então que meu anjo podia vir pelo ar, pela moita, pela água…

— Vamos de novo apanhar aquele araticum? — Cutuquei o meu irmão, para cumprirmos a meta.

— Olha aqui, mãe! Foi por causa desse araticum aqui que eu caí. — Evidenciei. 

E comemos o mais delicioso araticum das nossas vidas. 

Hoje o meu anjo da guarda vem pela consciência, orientando-me.

— Vai por aqui, não vai por ali…

Não sei se ele está em todas, nem se eu sigo suas recomendações à risca, mas eu o sinto presente.

Pelo que vivi, os anjos parecem ser bem versáteis mesmo. Recentemente, uma pessoa que admiro provocou mais uma revelação para mim: disse-me que eu era um anjo da guarda naquilo que me propunha a fazer. 

Não sabia que os anjos vinham também como pessoas. 

E não faço ideia de como isso pode acontecer; não sei se fui, nem mesmo se posso ser. 

Mas, se os anjos, por mais que às vezes se distraiam quando avançamos pelos galhos secos da vida, dão o seu melhor para tentar promover o nosso… Aí até pode ser que sim.



Juliana Tonin

Imagem

Imaginâncias V

Clarissa Menna Barreto

Apoio e revisão

Prof. Paulo Flávio Ledur


CRONICONTO 05

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Contos inspirados em experiências reais.

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