COMUNICÓLOGA
Doutora em Comunicação, com Pós-Doutorado em Sociologia da Infância

Minha vez de olhar

Como pai e mãe, quando a gente está criando os filhos, é aquela corrida. Por mais amor que se tenha por um filho, o pique pela subsistência, ou mesmo sobrevivência, impera.

E aí acontece muita coisa que a gente não vê.

Tenho uma memória de elefante. Acesso cenas muito antigas. É bem curioso, porque, embora não seja uma coisa que a gente comente, minha família já me confirmou essas visões várias vezes. 

No dia do meu parto, logo que nasci me colocaram numa mesa de inox, meio gelada, enquanto eu via minha mãe recebendo toda a atenção, pois sofrera grave hemorragia. Lembro de ter olhado para ela ressentida:

— Puxa! Ela nem me olhou!

Parir não deve ter sido fácil para ela.

Já mais crescida, quando completei um ano e nove meses, guardo a imagem de vê-la saindo de casa com meu pai para irem ao hospital, pois nasceria minha irmã mais nova.

Partiram. E só voltaram a minha irmã e o meu pai. A mãe, por conta de uma série de complicações em virtude das dores do parto que se misturaram às dores de cálculo na vesícula, só conseguiu voltar após seis meses de internação; foi uma coisa bem complicada.

— Tu fica com a vó, a tua irmãzinha com a outra vó, e visitarei vocês; mas dormirei contigo todas as noites. — Foi o plano do meu pai.

Aí eu fiquei com minha avó paterna, perto da minha casa, pois morávamos nos fundos da casa dela. E meu pai virou uma piorra.

— Trabalha, come, visita a mãe, dorme em casa comigo, visita a pequenininha… Coitado do velho! — Eu pensava.

Muitas vezes o via chorar no canto da mesa, e eu ia fazer um carinho. A mãe fazia uma falta danada para nós.

Mas minha avó tomou conta de mim. Era eu com ela, ela comigo… nos tornamos parceiras. Ficava sempre na barra da saia dela, sentia seu cheiro de sol. Cresci com ela.

Pela visível intensidade dessa relação, as primas e todo mundo da família diziam que eu era a neta preferida.

— A vó não gosta de muita ferveção e eu não sou muito fervedeira. — Era nisso que eu acreditava.

Já mais velha, quando cheguei aos três anos de idade, três e pouco, as duas passamos a mostrar parte do nosso elo nos almoços de domingo. Mas tudo começava na quinta.

Acontece que meu avô era o único homem de uma italianada. Nem sei quantas irmãs ele tinha, mas era um bando. E todas as quintas elas iam lá para a casa da vó e faziam massa, e riam, e faziam doce, e riam… Eram os preparativos para o sagrado almoço de domingo, no qual se reunia a gentarada toda.

— Vem. — Minha vó me chamava.

E eu já sabia que era a hora dos papelotes. Pegavam o papel de pão, cortavam, e me botavam aquele troço no cabelo. Eu ficava com aquilo sexta, sábado e parte do domingo.

— Vou ter de zanzar por tudo que é lugar assim, papelotada! — E zanzava.

Ainda durante essas amarrações, minha avó vinha com versinhos para eu decorar. E eu decorava, fosse o que fosse.

Passado o almoço acalorado, no qual todos comiam, e riam, e repetiam, e riam, ela me enfeitava toda: soltava os papelotes, colocava pó de arroz, vestidinho, sapatinho, meinha… eu estava pronta.

Quando eles me viam chegar daquele jeito, de pronto empurravam os pratos, a toalha, deslocavam tudo que estava em cima da mesa, e meu palco aparecia.

Eu, em cima da mesa, declamava. Às vezes errava algumas palavras, mas minha vó estava sempre ali, no ponto, e me dava um toquezinho. Afinal, eu era a obra dela.

Todos ficavam quietos, sérios, escutavam… e não ficavam me debochando.

— EEEEEEEEEEEE! — Gritavam ao final, em meio a muitos aplausos.

— Bis, bis… — Pediam!

Virava uma festa. Eu me mostrava; e era vista.  

Mais e mais velha, lá pelos cinco, eu já ia para a praia com ela durante o verão, o que só aumentava o número de acusações de ser a sua queridinha, pois só eu que ia.

— Isso é porque eu não incomodo, com certeza. — Era o que eu seguia acreditando.

E foi num desses veraneios que, por fim, saí das asas da vó. Tudo porque, defronte à casa, bem no campo de futebol no qual a gurizada jogava bola, uma família de patos resolveu circular.

— Eu sempre quis pegar um pato! — Era o sonho que se revelava para mim.

Então eu atravessava aquela rua e corria atrás dos patos. Todos os dias, dias e dias a fio. Até se dar a ocasião em que os patos entraram no pátio da casa, e eu embretei a pata mãe.

— Fui… fui… fui …  — Consegui!

— Peeeegueeeei o paaatoooooo! — A vitória narrou dentro de mim.

Aí, correndo, entrei segurando aquele pato pesado, e fui mostrar para a vó.  

— Tu conseguiu, hein! — Alegrou-se.

E eu fiquei ali diante dela, triunfante, com o pato.

— Tu já conseguiu. Agora tu vai lá e devolve o pato. — Aconselhou.

Simples! Fui lá, bem feliz, e devolvi o pato para a sua família.

— O que eu ia fazer com o pato?  — Entendi na hora.

Ele me serviu para experimentar o sentimento de realização do meu sonho, e foi ela que me mostrou isso.

— Então ela me via! — Eu me surpreendi.

Via, e também me olhava.

Claro que senti falta do olhar da minha mãe naquele primeiro dia. Mas me deixei ver por outros olhos, sempre observada pela minha vó.

Seria bom se os pais olhassem para os filhos como avós amorosos olham para os netos, talvez fosse essa a solução. Mas, às vezes, para nossos pais, dar e manter a vida se torna maior.

Como mãe, é possível que eu também tenha deixado de ver muitas coisas.

Quando fui parida como vó pela minha primeira neta, lembro de ter sentido uma explosão de amor ao vê-la, que deixou meu coração muito grande de felicidade; foi algo bem estranho.

—Ah! Então era isso que minha vó devia sentir por mim! — Compreendi tudo.

Agora, meu novo e talvez único sonho é que meus netos se lembrem de mim assim como eu me lembro dela.

Chegou a minha vez de olhar.



Juliana Tonin

Imagem

Imaginâncias VII

Clarissa Menna Barreto

Apoio e revisão

Prof. Paulo Flávio Ledur


CRONICONTO 07

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Conto Comigo

Contos inspirados em experiências reais.

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