COMUNICÓLOGA
Doutora em Comunicação, com Pós-Doutorado em Sociologia da Infância

Negra de alma e coração

A infância não morre na nossa vida. Não é uma planta que murcha, seca, passa seu ciclo; ela continua. E as experiências voltam, e vêm muito inteiras.

Eu me senti mortalmente ofendida por ter sido chamada de racista. Nunca fui, desde os cinco anos.

Era hora do almoço, e estávamos em quatro numa mesa para oito.

Reparei naquele espaço e, de repente, cruzei os braços, baixei a cabeça e embrabeci.

— Almoça! Tu tens de ir para a escola! — Atentaram-me para a responsabilidade.

— Não quero! Vou almoçar depois! — Grunhi.

— O que houve? — Deram-me espaço.

Comecei a chorar.

— Tem uma coisa errada acontecendo nesta casa. — Diagnostiquei.

— Olhem o tamanho da mesa! Por que ela tem de ficar esperando na cozinha, todo mundo almoçar, para depois se servir comida fria? — Soltei.

— Ela não precisa comer comida fria! — Segui, aos prantos.

— E o papai demora muito para comer. — Concluí.

Meu pai tinha hábitos burgueses: almoçava, comia sobremesa, tomava o cafezinho, e depois o licor. Então, na minha cabeça, era uma demora sem fim para ela poder almoçar.

— Pois é, minha filha, estou pensando sobre isso.  — E ele foi o único que conseguiu dizer algo diante do meu desespero. Ele tinha muita agudez para as sutilezas da vida.

Chamou-a.

— Tua presença está sendo solicitada à mesa. A partir de hoje tu vais almoçar com a gente. — Convocou-a.

— Minha negrinha! — Ela abraçou-me por detrás da cadeira, e acabei ganhando esse apelido.

Ali despertou em mim a sensibilidade, ao que depois eu passei a saber mais.

Eu tinha vínculo forte com ela, que me deixou muitas marcas: sua alegria de viver, toda contundente, seu corpo, sua risada, gargalhadas, o colo amoroso; era muito afetiva comigo. Eu acho que ela foi a minha mãe.

Tínhamos um segredo. Para os meus pais, criança não podia tomar café, fazia mal. Mas ela me permitia tomar todas as sobras de café do meu pai, todos os dias, e eu tomava ligeiro.

— Não está dando certo! — Queixei-me para ela quando comparei nossos braços.

— Como assim, negrinha? — Ficou sem entender.

— Não estou escurecendo! — Eu acreditava que, tomando muito café, iria ficar igual a ela; era um barato ser negra!

— Minha negrinha! — Divertiu-se.

Ela não aceitou sentar-se à mesa conosco naquele dia. Foi-se embora, alguns anos depois, para produzir doces com sua irmã. Mas aquilo que vivemos juntas seguiu comigo.

Quando eu já tinha em torno de dez anos, vi que meu pai e minha mãe acompanhavam, no rádio, A Cabana do Pai Tomás. E minha mãe chorava.

— Também quero escutar essa novela. Que história é essa que eu não posso escutar? — Reivindicava-me.

— Sai! Isso não é pra ti! Novela não é para crianças. — Direcionava minha mãe.

Saí magoada.

Meu pai também saiu, e levou-me para uma conversa.

— Por que novela não é para crianças? — Questionei.

Foi aí que recebi dele uma aula sobre a escravidão no Brasil. Ele era uma enciclopédia ambulante, um homem de palavras.

Fiquei encantada com todos os detalhes que ele revelava sobre a Princesa Isabel e tudo, e muito revoltada também: ele falava a verdade verdadeira.

— Então era essa a história vivida pelos avós dela! — Lembrei-me de minha mãe negra.

— Mas alguém tem que fazer alguma coisa? — Exaltei-me.

— Não, minha filha. Não existe mais escravidão agora. Existem outros tipos de escravidão… não a escravidão oficial… — E continuou.

— Mas, pai! A gente tem de fazer alguma coisa! — Insisti.

— Minha filha, tu podes estudar e, quando ficares maior, ser uma ativista antirracista. — Iluminou.

Eu estava no antigo ginásio, num colégio de freiras, e cheguei motivadíssima. Saltitava, falava com o corpo inteiro, voluptuosa, decidida.

Enquanto a professora dava a aula, reuni um grupo de colegas e comecei a contar tudo para elas.

— Podemos ser ativistas racistas! — Afinal, entendi também que seria mais uma opção de profissão, além daquela de ser professora.

— É mentira do pai da negrinha! Não é verdade! E a gente tem de escolher uma só profissão! —  Atropelavam-me, questionando tudo.

— Não, o papai me disse que podemos ser ativistas racistas! — Seguia convicta.

— Sabe o que é ser ativista racista? — Tentava argumentar mais.

— As alunas estão muito motivadas com esse assunto, por isso não vou dar aula. — A professora falou para a Irmã, que era nossa orientadora educacional, pois teve de chamá-la.

Ela era linda! Parecia uma garça caminhando pelo pátio, pelos corredores…

— As alunas todas para a sala redonda! Vamos conversar sobre isso que a negrinha está pensando. — Convocou-nos.

— O pai da negrinha não mentiu. — Começou.

E passou um carrossel de slides sobre Mandela, Debret…

Aquilo tudo foi muito importante para mim. Eu amava meu pai, e ele não era mentiroso.

— Querida! Teu pai não deve ter dito ativista racista, mas, sim, antirracista. — Esclareceu.

Puxa! Tinha me escapado o anti…

A confusão foi geral mesmo. Mas o fato é que fui legitimada, e por uma educadora.

— Sou bem assim! E acham ótimo! — Ocupei meu espaço.

Muitas outras situações decorreram depois dessas. Mas foi ali que decidi mesmo ser ativista quando eu crescesse; abriria espaços. Busco abri-los de muitas formas. Porque vai chegar uma hora que o Brasil vai mudar, e a gente precisa começar entre nós.

Entende agora a minha indignação?

— Mãezinha, não, somos todos nós, eu também sou… todos somos racistas, vivemos o racismo estrutural…

— Não sou! — Eu argumento com quem quer que seja.

Meu pai, a novela, Mandela, Debret, a Irmã e a História apenas vieram completar, com informações, o que já estava presente em mim, desde muito cedo, revelado pelo afeto: sou negra de alma e coração.

Essa é a minha estrutura.



Juliana Tonin

Imagem

Imaginâncias VIII

Clarissa Menna Barreto

Apoio e revisão

Prof. Paulo Flávio Ledur


CRONICONTO 08

Conheça a proposta →

Compartilhe

Autor(A)

Conto Comigo

Contos inspirados em experiências reais.

Leia também

News

Reimaginar a Comunicação

Algumas experiências superam a racionalidade. Talvez seja por isso que a Unesco publicou, em 2022, cento e oitenta e nove páginas de um documento, ou

Leia mais »

News