COMUNICÓLOGA
Doutora em Comunicação, com Pós-Doutorado em Sociologia da Infância

Eu, mocinha?

Sem contar a escola, brincar era minha maior ocupação. Tinha direito, dever e gostava; vida simples.

Na tarde daquele dezembro, às vésperas do verão, uma tia convidou-me para doar brinquedos para crianças carentes, ação que organizara com amigas, se não me engano.

Aceitei ajudar.

Roupas, cabelo, sapatos, horário: queria fazer bonito nesse dia atípico. Mas de repente fui surpreendida por algo que escapou de mim.

— Xixi?! — Óbvio, embora improvável.

— Mãããe! — Entoei já no banheiro.

— Filha! Olha só: agora a gente pega um absorvente aqui, coloca assim… E pode ir. Não tem problema. — Naturalizou.

— Deve olhar sempre para ver se está cheio; daí retira, enrola assim, desse jeito, e coloca no lixo para usar um novo. — Instruiu.

Calada, eu prestava atenção.

— Não te preocupes. Nesse tempo de ir e voltar não será preciso trocar. — Previu.

Chegara o meu dia.

— Ah! Olha! Agora tu precisa ter um comportamento diferente: tu virou mocinha. — Consumou.

— O que é isso agora?! — Pensei assustada.

Era uma súbita virada de vida para meus onze anos.

Fui ao evento toda endurecida. Por dentro, eu me debatia. Não fazia sentido acordar criança e dormir mocinha.

Mal conseguia caminhar, porque aquele absorvente parecia uma fralda de tão grande, mas eu tinha de me adaptar.

— Será que, quando sair na rua, alguém vai perceber?

— Será que vai acontecer alguma coisa e ninguém vai me dizer?

Tensão e atenção passaram a ser constantes, pois adentrara num mundo misterioso e cheio de riscos.

— Ela já é mocinha! — Anunciava minha mãe para outras mulheres nos dias que se passaram.

Bastava dizer a palavra mocinha para que a verdade se revelasse entre as iniciadas.

Meu pai nunca tocou no assunto. Talvez soubesse, mas fingia que não. Nunca vi a mãe contar para algum homem. Era secreto, mas não para todo mundo.

— Parabéns! Agora já cresceu. — Ouvia nas ocasiões em que o meu evento privado se tornava público.

— Bem, agora que sou mocinha, não posso mais brincar!? — Concluía meu fim.

Mergulhei num oceano de culpa. Não sabia o que fazer com minhas bonecas. Brincava e desbrincava… Meu novo balanço.

Sentia vergonha, não pelo fato em si, mas porque eu queria ser criança.

Não era estranho nem doloroso menstruar, tampouco fazia perguntas ou compreendia seu porquê; acontecia. Sequer sabia da existência de relações sexuais.  

— A partir deste momento, tu cresceu! — Isso era o que me incomodava: o decreto.

Nunca recebi instruções sobre o tal novo comportamento. Talvez  minha mãe também me visse como criança.

Até os meus quatorze, não conversava sobre isso. É provável que tenha acontecido com minhas vizinhas de condomínio, mas o silêncio pairava entre nós.

Aos poucos começamos a nos ajudar entre colegas.

— Ah! Olha! Tenho absorvente aqui, posso te emprestar. — Nada além disso.

Entrei no primeiro ano do Ensino Médio e logo em seguida uma colega, de treze anos, ficou grávida.

— Fiz um aborto. — Contou com ares de situação resolvida.

Foi apoiada pela família, embora seu namorado, também de treze, e pais preferissem outro desfecho. Ninguém a rejeitou na turma por conta disso.

Mas ficamos apavoradas.

— Meus Deus! Como isso pode acontecer? — Eu me questionava.

Eu me via adolescente, não mãe.

Logo no final do ano ou início do próximo, ela ficou grávida de novo, do mesmo namorado. Fez outro aborto.

Fiquei surpresa com o aborto, e com o fato de ela ter engravidado, mas não pelo sexo. Tudo ficava claro para mim aos poucos, talvez por conta das aulas de ciências e biologia; era conteúdo para vestibular.

Aos vinte conheci uma amiga cuja irmã fazia sucessivos abortos. Parecia ser fácil, mas eu pensava que devia ser uma coisa muito sofrida.

Já havia parado de me questionar sobre ser grande, mocinha, e mudei esse desgosto pelo de não gostar de menstruar.

— Ah! Sete dias: cuidar, trocar, ir ao banheiro com frequência… — Ruim!

Conversas aqui, outras ali, e declarações de incômodos se entrecruzavam.

Namorei, casei e passei a vigiar tecnicamente o ciclo dos meus dias por alguns anos, sempre com o pesar da sensação de desconforto.

Durou até o nascimento da minha filha.

Não foi um marco, mas a partir daí minha relação com a menstruação mudou completamente.

Lia e conversava com outras mulheres, que passaram a olhar de forma diferente também. E ganhei de uma amiga, quando voltou de viagem dos EUA, um tipo novo de recurso para usar naqueles dias, que experimentei. Passei a testar de tudo um pouco, o que me levou a usufruir de diversas opções conforme o dia.

Nasceu em mim a profunda compreensão de que menstruar é algo natural, não um empecilho. Hoje sinto os ciclos como algo bom, e confesso que fico bem contente com isso.

Cuido para que a estreia da minha filha seja isenta de quaisquer interrupções.

Virar mocinha levou minha criança. Virar mãe trouxe uma nova criança.

Faces da Criação reveladas pelo ventre do meu ser Mulher.


Juliana Tonin

Apoio e revisão

Editora AGE – Prof. Paulo Flávio Ledur

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Contos inspirados em experiências reais.

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